segunda-feira, 1 de junho de 2020

Pais e filhos: voltem aos vossos lugares!

O (des)confinamento por causa da pandemia COVID-19 é uma oportunidade para que os pais reocupem o lugar de pais e os filhos o lugar dos filhos.

Muitas das perturbações familiares que acompanho na minha atividade clínica dizem respeito à forma como as famílias se organizam, desde algumas gerações até ao presente, em função de uma inversão total ou parcial dos papéis geracionais. Aliás, pensando bem, em muitas famílias que conheço para além da clínica, e se calhar até nalguns segmentos da minha própria família, se pode constatar esta organização, onde o que está distorcido é a inversão dos papéis de cuidador e cuidado. Nessas famílias a função atribuída às crianças, e cumprida, é a da nutrição emocional dos pais, na tentativa de preencher os vazios emocionais dos adultos que sentem de poder salvar, resgatar, proteger. São exemplo disto os filhos que dormem com os pais para preencher o vazio que existe na cama dos pais, filhos que sugam a atenção dos pais, protegendo-os contra a solidão que sentiriam sem essa distração, filhos que fazem muito barulho ou estragos na casa garantindo que os pais não discutam entre eles, filhos que não podem brincar sozinhos porque deixariam o casal dos pais confrontado com uma intimidade que se esbateu ao longo do tempo.

A intimidade "perdida" de um casal que não sabe como recuperá-la, precipita muitas vezes a conjugalidade para um desencontro sentido como fatal, que perdurará no tempo, com sérias consequências para a saúde mental de cada um dos envolvidos, a menos que se possa falar dela.
A parentalidade tem várias funções evolutivas tais como demonstrar às gerações anteriores a capacidade de produzir novas famílias, ou de criar novas formas, adaptativas à mudança da natureza, da sociedade e da cultura e dos próprios organismos biológicos. Mas a parentalidade também tenta responder, muitas vezes, às lacunas emocionais do passado, depositando nas crianças a expectativa, também essa potencialmente perigosa para a saúde mental, de resgatarem o amor que aos pais faltou enquanto filhos. Uma criança que existe como "a razão de viver" de um pai ou de uma mãe é uma criança que não poderá gerar nem receber livremente amor para, ou de , mais ninguém, permanecendo assim condenada a sentir culpa por estar a trair o "amor mais importante". O amor mais importante não é por um pai, ou por uma mãe, por um namorado ou por uma amiga ou por um filho, mas sim aquele que é livre de existir. E com isto não estou a dizer que o amor é incondicional. Não é. Da mesma forma como a liberdade também não o é. E uma das condições parece ser a de que se possa potenciar a expressão das individualidades e, ao mesmo tempo, a parceria, a vontade de essas crescerem juntas.

Como é que podemos então combater a inversão dos papéis?

Em primeiro lugar permitindo-nos ser pessoas, mulheres e homens, para além das funções que temos. Se eu não posso ser quem eu sinto que sou então com certeza que vai aparecer alguém que, gostando de mim, se dedique a arranjar-me uma razão de viver. E esse alguém, seja filho, filha, ou par amoroso, não poderá ser ele próprio porque é, sobretudo, a função de me fazer feliz. E assim vamos andando de conto romântico em conto romântico, onde todos somos sempre metades. Se partirmos do principio que a parentalidade comporta, na grande maioria das vezes, um desencontro na conjugalidade ou intimidade do casal, o desafio será o de encontrar recursos nesse desencontro, descobrindo-lhe as funções positivas.

Costuma ser útil aquela pergunta: "um tubarão e um papagaio apaixonam-se...onde podem viver?" Nem o tubarão poderá desenvolver asas nem o papagaio conseguirá inventar guelras e barbatanas a tempo de se adaptar à água. Terão que encontrar um território de contacto onde a sobrevivência não implique deixarem de ser quem são. Vão ter que dizer um ao outro o que é que querem, como é que respiram e quando têm falta de ar, vão ter que saber dizer onde podem ou não estar, onde gostam ou não gostam. Um pequeno tubaraio ou um papagãozinho, não os vai poder ajudar e vai provavelmente salientar as diferenças, é isso que será mais natural.
Ou seja, se a existência de filhos vem realçar a diferença nos pais, talvez isso se deva ao facto de que é efetivamente importante ser diferente e cultivar essa diferença. Cultivar a diferença numa família é promover o confronto real e a curiosidade entre todos, interpretando menos e revelando mais sobre as necessidades. Quanto tempo mais vamos continuar a reforçar o mito de que o verdadeiro amor é o que não precisa de palavras, o que se basta num simples olhar ou gesto? Esse amor pode existir e até mesmo ser fundamental quando se trata de um pai ou mãe por um bebé ou uma criança que ainda não desenvolveram a capacidade de expressar claramente as suas necessidades e precisam da interpretação dos adultos como estratégia de eleição para a elaboração de respostas aos problemas que surgem.

Os adultos, por sua vez, precisam de mapas para se poderem aproximar e respeitar. O que acontece é que na história geracional de muitas famílias os filhos aprenderam que não se pode ou não se deve explicitar as próprias necessidades porque isso é sinal de fraqueza e cabe aos pais transformar esse modelo da vulnerabilidade expressa como limitação em expressão das vulnerabilidades como competência e recurso.
Dois adultos têm a responsabilidade de construir um modelo positivo do confronto, da discordância com respeito, da vulnerabilidade partilhada. A nossa vulnerabilidade é a nossa força mais importante porque nos ajuda a identificar quem queremos ao nosso lado, porque é uma força que nos inclina para os outros sem o propósito nem a potencia de os aniquilar. Quando um adulto não pode confrontar o outro, não pode dizer o que sente sob pena de poder magoar, os filhos quererão proteger quem não fala por medo. Os nossos neurónios espelho, responsáveis pela empatia, sintonizar-se-ão sempre melhor com quem precisa de ser ajudado e não tem formas para o fazer. Mas para além da atrocidade de ter que escolher um lado, abre-se dessa forma a porta para a vontade de pertencer a um modelo que não tem que falar, não tem que se expor e sobretudo não tem que entristecer ou fragilizar porque um filho ou uma filha o compensará. Os filhos não suportam muito tempo esse peso sem sequelas graves para a sua autonomia e os pais não suportam muito tempo essa forma de dependência sem sequelas graves no seu sucesso ou satisfação relacional, social e profissional, onde não é raro o aparecimento de pensamentos ou condutas autodestrutivas.

Posto isto sugiro vivamente que o (des)confinamento seja aproveitado para os adultos falarem, conhecerem nos parceiros e parceiras o que não conhecem ainda, procurando utilizar perguntas novas e diferentes das que costumam fazer. Sugiro que estes adultos encontrem momentos para brincar com os filhos mas também  momentos em que os filhos sejam dispensáveis porque os adultos estão a namorar, ou a discutir, e não há problema. Que lhes seja devolvido sobretudo esta noção de que não são os protetores dos pais e que lá porque os pais estão a resolver coisas entre eles, não quer dizer que não saibam cuidar de si.
E, muito importante também, penso ser a decorrente conclusão a partir do exposto até agora, que, em caso de crise aguda na relação entre os pais não são os filhos a decidir se um casal deve estar junto ou não. Se os adultos sentem que não conseguem discutir sozinhos podem pedir ajuda aos profissionais de saúde, psicólogos e terapeutas familiares, que os acompanharão neste processo. Há, inclusivamente, muitos comportamentos sintomáticos de crianças e adolescentes que perdem relevo quando estes sentem que existe alguém que finalmente toma conta dos pais. Pedir ajuda, falar do que se sente e discordar, mesmo que com algum receio, é sempre mais produtivo do que silenciar, enviar pistas, ou concordar por medo. Se não for possível na relação de casal, peçam ajuda, não façam dos vossos filhos os vossos salvadores porque nunca serão.

Se quiser coloque aqui as suas questões, comentários ou pedidos de ajuda. Também pode visitar a equipa da casaestreladomar.pt e colocar-nos diretamente as suas questões através do e-mail geral@casaestreladomar.pt